Esse projeto nasceu da minha paixão por Manoel de Barros e da minha vontade de falar sobre poesia. Dele, surgiram várias cartas que estou postando aos poucos nas redes sociais. Acompanhe as primeiras delas aqui.
{ Carta #1 }
Querido Manoel,
desculpe a intimidade. Às vezes, eu me sinto como se já te conhecesse. Talvez de outras vidas. Vidas inventadas, claro, o que pouco importa. O que sei é que me sinto em casa nas suas palavras. Uma familiaridade que me faz querer te escrever.
Preciso te confessar. Nunca tive um quintal. Não vivi na roça. Mas acho que fui salva pela casa da minha vó. Foi lá que preenchi meu baú da infância.
Acho que tratei de compensar a ausência dos bichos com os retalhos. Eram muitos naquela casa. O que não servia mais para costura era pano de sobra pra minha imaginação. Restos. Você entende bem disso, né, meu amigo?
O que posso dizer mais pra me apresentar? Posso pegar suas palavras emprestadas? Sou do tipo que preza mais insetos que aviões. Acho que isso diz muito das pessoas. O seu prezar é bastante revelador. Você traduziu isso tão bem. Diga me o que te encantas que eu te direi quem és, eu te digo.
Cores, letras, luzes e silêncios compõe o meu relicário de encantos ou, simplemente, Encantário. Coleciono borboletas e palavras. As borboletas prefiro vivas. As palavras, escritas.
Ser falante, ser pulante e ser pensante. Foi assim que certa vez um tio nos classificou, a mim e a minhas irmãs quando crianças. Preciso dizer que fui enquadrada na última opção?
Gosto de observar o mundo devagar. Quase em câmera lenta. Só assim consigo ver os detalhes e as borboletas de perto.
Com você, Manoel, entendi que além de pensante, também sou ser letral. Só mesmo as palavras escritas para capturar esse ritmo nosso, né? Não há ouvinte mais generoso que o papel.
Antes de me despedir por hoje, te peço desculpas mais uma vez, meu amigo. Me desculpe pelas longas sentenças. Sei que prefere o ritmo compacto e preciso dos versos. É que minhas palavras se sentiriam mais inibidas assim: escrever poemas para o maior dos poetas? Seria muita ousadia da minha parte, eu sei. Mas prometo disfarçar um pouco da minha humilde poesia na minha prosa, sempre que possível.
Obrigada por me ler, onde quer que esteja. Até a próxima carta.
Com amor e asas,
Dani Brandão
{ Carta #2 }
Querido Manoel,
dia desses, assisti a uma entrevista sua. Uma das poucas que fez em vídeo. Você disse que não gosta muito de falar para câmera, que o seu ser biológico não tem muita graça, que o seu ser mais interessante é o letral.
Preciso te dizer uma coisa: acho que o seu ser letral contaminou o seu ser falante. É indubitável. Sua poesia anda escapando pelos buracos da fala. Acho que foram os muitos anos de convivência. Processo irreversível de certo.
Quantos foram, aliás, os anos? Quantas páginas por dia? Quantas palavras escritas? Quantas frases apagadas? Uma vida inteira dedicada às palavras. Será que já é tarde demais para mim?
Sigo observando. Sigo questionando as coisas e suas inutilidades. Sigo sonhando e escrevendo. Sigo com esperanças. Quiça, um dia, essa epidemia também me contagie.
Ao seu encanto,
Dani Brandão.
Do meu quintal imaginário.
{ Carta #3 }
Querido Manoel,
certa vez, você disse: “de dentro de mim, não saio nem pra pescar.” Suas palavras ressoaram aqui.
Difícil isso de ficar dentro da gente, né?
Tem dias que parece apertado aqui dentro. Carrego em mim memórias, medos e amores. São muitos os meus inquilinos.
Versões de mim mesma. Uma criança alegre e destemida. Uma adolescente tímida e insegura. Uma adulta chata e perfeccionista. Uma senhora rabugenta de 90 anos.
Versões dos outros, criadas por mim. Uma mãe amorosa. Uma mãe exigente, que me fuzila com os olhos só de pensar em fazer algo errado. Um pai amigo. Um pai preocupado demais, que me diz que é perigoso brincar lá fora. Irmãs-melhores-amigas. Irmãs-que-quero-jogar-pela-janela. Um-marido-que-amo-mais-que-tudo. Um-marido-que-quero-jogar-pela-janela Um par de avós. Um par de avôs. Muitos tios. Muitos primos. Amigos de verdade. Amigos imaginários baseados em fatos reais. Inimigos, muitas vezes imaginários, baseados em novelas reais.
Quanta gente. Quantas vozes…
E, ainda assim, tem dias que parece tão vazio e solitário aqui dentro…
Dá pra acreditar? Fazer o que, né?
Sair pra pescar que não vai ser. No meu caso, nem dentro, nem fora.
Perdi a chance de aprender essa arte com o meu avô, um grande pescador. Homem bom, mas de poucas demonstrações de afeto. Certo dia, encontrei um bilhete em suas coisas. Talvez tenha sido a sua maior declaração de amor pra minha avó. Escreveu: “No seu próximo aniversário, te juro: não saio nem pra pescar.”
E assim ficou. Dentro de mim.
Até a próxima carta,
Dani Brandão.
Do meu quintal imaginário.
{ Carta #4 }
Querido Manoel,
outro dia, assisti um espetáculo de dança em sua homenagem.
Nuvem de Barros. Assim foi, lindamente, batizado.
Se eu gostei do que vi? Bem, preciso dizer que tive uma doce desilusão. Não que não tenha sido inspirador, pelo contrário. É que imaginei encontrar ali a sua poesia em palavras. Acabei a encontrando vestida de silêncios.
Silêncios. Agora, vejo que o seu universo era povoado deles, não era, meu amigo? Poucas palavras humanas. Poucas ações. Poucas cores. E muito espaço para a poesia.
Silêncios compostos de música, de bichos e de encantamentos.
Como um artesão que esculpe no barro as suas obras, você esculpiu no silêncio as suas frases.
Sim, é preciso um olhar atento para fazer brotar a magia de um solo, aparentemente, árido. Sim, é preciso silenciar o mundo para ouvir as palavras que brotam de dentro. Só assim, pode se unir a leveza da nuvem com a potência do barro.
E foi assim que, naquela noite, você me tirou para dançar, Barros.
Do meu quintal imaginário,
Dani Brandão
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